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Sobre estômagos e Bolsonaro 

Sobre estômagos e Bolsonaro 

As vítimas foram mortas porque flagradas fotografando e filmando a pesca clandestina para o tráfico. Narconegócio. Foi essa palavra, mais leve que narcotráfico, o termo usado pelo prefeito do município de Benjamim Constant à GloboNews, um município da região

Sobre estômagos e Bolsonaro 

Foto: Reprodução - Jornal da Metropole

Por: Malu Fontes no dia 16 de junho de 2022 às 07:46

A associação é horrível. Mas é tanta coisa medonha nesse país que os sensíveis só sobrevivem se for à custa de lobotomia ou de fuga para lugares que não existem. Gatilhos são fichinhas de millenials. No Brasil, são grandes e simultâneos os incêndios por toda parte, mesmo sob ou sobre as águas, como ilustra bem a tragédia do jornalista inglês Dom Phillips e do indigenista Bruno Araújo. E aqui vai a associação, para os fortes, misturando violência, vísceras, fezes e podridão. Quem dera metafóricas. Mas são literais, reais, explícitas, concretas. Com muita reiteração, mesmo. Se houvesse um desses charlatões que leem sorte e azar, se tivesse o mínimo de talento, haveria de dizer ao presidente Jair Bolsonaro para ter muito, muitíssimo cuidado com estômagos. E não estaria se referindo a questões digestivas. 

Na campanha eleitoral passada, uma facada no estômago do então candidato à Presidência da República provocou as alterações que todo mundo conhece no cenário das eleições. A mais importante: alguém quis matar o candidato. Teve-se, então, um mártir que sobreviveu. Muito caminho adiantado nas urnas. A simbólica: machucado, frágil, com os intestinos em fiapos, o candidato ficou autorizado, sob argumentos médicos, a ausentar-se de todos os debates eleitorais e, estrategicamente, de todos os eventos que o colocassem em situação de estresse com críticos ou concorrentes. Além das teorias conspiratórias infladas até hoje nas sub-redes do pântano da web, as do reino divino e as das famílias de bem. 

Agora, às vésperas dos quatro anos da facada (7 de setembro) que Adélio Bispo deu em Bolsonaro, somos, infelizmente, obrigados a conviver com o protagonismo de outro estômago. Um estômago humano foi encontrado boiando num dos braços de rio do Vale do Javari, no trecho próximo aos municípios de Benjamim Constant e Atalaia do Norte, interior do estado do Amazonas, nas imediações da fronteira tríplice Brasil/Peru/Colômbia 

Como o achado inusitado se deu uma semana após o desaparecimento do jornalista inglês Dom Phillips e do indigenista brasileiro Bruno Pereira, as dúvidas sobre de quem era o órgão já nasceram exíguas. 

Se o estômago furado de faca em setembro de 2018 contou pontos para Jair Bolsonaro e o ajudou a eleger-se, o estômago flutuante no rio amazônico de 2022 deverá desmoralizá-lo a níveis irredutíveis na cena internacional. Já provocou danos irreversíveis, lá fora e alguns aqui dentro, sempre menores na esfera doméstica, nacional, de tão acostumados que estamos a contar corpos ininterruptamente, sem mesmo inventariá-los direito e ocupados que vivemos em contar cadáveres sem ter tempo sequer de anotar entre uns e outros seus nomes e as circunstâncias de suas mortes. 

MINISSAIA NA RUA NOTURNA

Diferentemente do próprio estômago, que o beneficiou em 2018, o estômago alheio arrancado pelos crimes ininterruptos da Amazônia brasileira deverá produzir um grand canyon no coração do governo Bolsonaro. Todo crime bárbaro é um crime bárbaro, mas sabe-se que, no Brasil, é diferente. Por se tratar de dois assassinatos confessados por brasileiros a serviço do narcotráfico incrustado na floresta amazônica, e de uma das vítimas ser um jornalista inglês conhecido por sua passagem pelos principais veículos de imprensa do mundo, as consequências não serão pequenas. A elas se somará o conjunto de frases estúpidas - perdão, pela redundância - ditas pelo presidente brasileiro durante os 10 dias em que Dom e Bruno ficaram desaparecidos. Entre elas, a fala de que Dom não era bem visto pelos seringueiros e que há gente que abusa em aventuras. Mais do mesmo. A tese vencida e adaptada do estuprador que responsabiliza a minissaia na rua noturna, culpando quem morre. 

Como se fossem coisas pequenas e fáceis de resolver a omissão do poder público para proteger indígenas de extermínio, impedir a derrubada da floresta para exportação ilegal de madeira e a transformação da mata em pasto e a contaminação dos rios com metais pesados do garimpo, o crime hediondo que matou Dom e Bruno escancara um inferno brasileiro pouco conhecido. A morte dos dois revelou que lideranças do tráfico de drogas do Peru e da Colômbia aliciam e pagam pescadores clandestinos brasileiros do Vale do Javari para pescarem ilegalmente nas áreas indígenas. 

O peixe é para alimentar os soldados do narcotráfico na mata, mas, principalmente, para abastecer os mercados colombianos e peruanos, lavando dinheiro da pasta base de cocaína que escoa para o Brasil, a África e a Europa, pelos rios Solimões e Amazonas. Enquanto este texto é escrito, era isso o que se sabia: Dom e Bruno foram mortos, esquartejados e queimados por terem sido vistos por três brasileiros, todos parentes entre si, pescadores a serviço do narconegócio. As vítimas foram mortas porque flagradas fotografando e filmando a pesca clandestina para o tráfico. Narconegócio. Foi essa palavra, mais leve que narcotráfico, o termo usado pelo prefeito do município de Benjamim Constant à GloboNews, um município da região. 

Na véspera, o ex-delegado da Polícia Federal Alexandre Sampaio, que caiu em desgraça com o atual governo por investigar crimes na região amazônica, resumiu tudo numa tese que soa, no mínimo, melancólica. A curto e médio prazo, o combo de crimes cometidos na Amazônia não tem solução. A cada fio de meada que se puxa, vem junto uma fileira de gente muito importante com mandato eletivo e poder na região, protegendo tudo o quanto é tipo de crime cometido contra a floresta e os indígenas. Toma, presidente, segura com a colostomia esse estômago flutuante no peito. É teu.