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Ninguém dorme nem relaxa, mas todo mundo está ótimo

Ninguém dorme nem relaxa, mas todo mundo está ótimo

Embora um terço dos brasileiros, segundo pesquisa do Datafolha divulgada esta semana, digam sentir-se ansiosos, sem interesse ou prazer na vida, com anomalias no sono, depressivos e sem esperança, estranhamente 70% se autoavaliam como tendo saúde mental ótima e boa

Ninguém dorme nem relaxa, mas todo mundo está ótimo

Foto: Reprodução

Por: Malu Fontes no dia 24 de agosto de 2023 às 08:13

Sabe aquela expressão usada para insinuar que ninguém é santo? ‘Todo mundo é honesto, mas meu casaco sumiu’. Estamos precisando de criatividade para criar algo semelhante capaz de resumir em poucas palavras a dissonância entre os sintomas que os brasileiros dizem apresentar quando são perguntados sobre qualidade de sono, ansiedade, depressão, angústia, etc, e quando lhes pedem para descrever o estado de saúde mental.

Embora um terço dos brasileiros, segundo pesquisa do Datafolha divulgada esta semana, digam sentir-se ansiosos, sem interesse ou prazer na vida, com anomalias no sono, depressivos e sem esperança, estranhamente 70% se autoavaliam como tendo saúde mental ótima e boa. Isso significa que as mesmas pessoas que admitem ter uma série de sintomas e distúrbios que interferem na saúde mental não percebem nenhum deles como patológicos.

Para especialistas convidados pelo instituto para interpretar a dissonância entre o que as pessoas sentem e como se autopercebem, o abismo entre as respostas é explicado pelo preconceito e medo que as pessoas têm de admitir transtornos psíquicos. Para o senso comum, distúrbios de saúde mental são associados quase que exclusivamente ao que consideram loucura, as psicoses, ou a dependência química do tipo que torna as pessoas não funcionais e improdutivas.

É a velha história: se a pessoa sente uma dor insistente em algum órgão do corpo, a coisa mais natural do mundo é procurar um médico para submeter-se a tratamento, quase sempre medicamentoso. Mas ter distúrbios alimentares, crises de ansiedade, medo, pânico, ausência de sono ou excesso, tristeza permanente e desinteresse pela vida? Aí não, não se procura psiquiatra, neurologista ou psicólogo. Vale o mantra popular: eu não sou louco/louca para precisar de tratamento de saúde mental. Ter uma cardiopatia e tratar, tudo certo. Sofrer de insônia e ansiedade e aceitar medicação como antidepressivo e regulador de humor, ah, não, é remédio de doido.

Pessoas quebradas
E assim chegamos aos números do Datafolha. Um terço da população com a cestinha de sintomas psíquicos cheia, mas, paradoxalmente, 70% afirmando, com total certeza disso, que têm uma excelente saúde mental. No universo das mulheres e dos mais jovens, é maior a concentração de distúrbios. E em um segmento específico da população, as crianças e os jovens, vem se abrindo um buraco que a maioria das cidades brasileiras não oferece rede de apoio e tratamento capaz de oferecer atendimento. Cresce em percentuais significativos os índices de autoviolência e de suicídio entre crianças e jovens até 19 anos. Somente em São Paulo, nos seis primeiros meses deste ano, foram 1.863 casos.

Ao medo do estigma do diagnóstico de saúde mental que as pessoas e as família têm, soma-se a carência profunda de atendimento especializado na rede pública. É um deserto de serviços e o poder público parece não querer tomar conhecimento da dimensão do problema. Com o confinamento social a que a população foi submetida por conta da COVID, emergiu uma epidemia silenciosa de sofrimento mental. E mente quem diz que está tudo bem, seja na esfera individual ou na pública. Estamos diante de milhões de pessoas quebradas por dentro.

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