
Ninguém dorme nem relaxa, mas todo mundo está ótimo
Embora um terço dos brasileiros, segundo pesquisa do Datafolha divulgada esta semana, digam sentir-se ansiosos, sem interesse ou prazer na vida, com anomalias no sono, depressivos e sem esperança, estranhamente 70% se autoavaliam como tendo saúde mental ótima e boa

Foto: Reprodução
Sabe aquela expressão usada para insinuar que ninguém é santo? ‘Todo mundo é honesto, mas meu casaco sumiu’. Estamos precisando de criatividade para criar algo semelhante capaz de resumir em poucas palavras a dissonância entre os sintomas que os brasileiros dizem apresentar quando são perguntados sobre qualidade de sono, ansiedade, depressão, angústia, etc, e quando lhes pedem para descrever o estado de saúde mental.
Embora um terço dos brasileiros, segundo pesquisa do Datafolha divulgada esta semana, digam sentir-se ansiosos, sem interesse ou prazer na vida, com anomalias no sono, depressivos e sem esperança, estranhamente 70% se autoavaliam como tendo saúde mental ótima e boa. Isso significa que as mesmas pessoas que admitem ter uma série de sintomas e distúrbios que interferem na saúde mental não percebem nenhum deles como patológicos.
Para especialistas convidados pelo instituto para interpretar a dissonância entre o que as pessoas sentem e como se autopercebem, o abismo entre as respostas é explicado pelo preconceito e medo que as pessoas têm de admitir transtornos psíquicos. Para o senso comum, distúrbios de saúde mental são associados quase que exclusivamente ao que consideram loucura, as psicoses, ou a dependência química do tipo que torna as pessoas não funcionais e improdutivas.
É a velha história: se a pessoa sente uma dor insistente em algum órgão do corpo, a coisa mais natural do mundo é procurar um médico para submeter-se a tratamento, quase sempre medicamentoso. Mas ter distúrbios alimentares, crises de ansiedade, medo, pânico, ausência de sono ou excesso, tristeza permanente e desinteresse pela vida? Aí não, não se procura psiquiatra, neurologista ou psicólogo. Vale o mantra popular: eu não sou louco/louca para precisar de tratamento de saúde mental. Ter uma cardiopatia e tratar, tudo certo. Sofrer de insônia e ansiedade e aceitar medicação como antidepressivo e regulador de humor, ah, não, é remédio de doido.
Pessoas quebradas
E assim chegamos aos números do Datafolha. Um terço da população com a cestinha de sintomas psíquicos cheia, mas, paradoxalmente, 70% afirmando, com total certeza disso, que têm uma excelente saúde mental. No universo das mulheres e dos mais jovens, é maior a concentração de distúrbios. E em um segmento específico da população, as crianças e os jovens, vem se abrindo um buraco que a maioria das cidades brasileiras não oferece rede de apoio e tratamento capaz de oferecer atendimento. Cresce em percentuais significativos os índices de autoviolência e de suicídio entre crianças e jovens até 19 anos. Somente em São Paulo, nos seis primeiros meses deste ano, foram 1.863 casos.
Ao medo do estigma do diagnóstico de saúde mental que as pessoas e as família têm, soma-se a carência profunda de atendimento especializado na rede pública. É um deserto de serviços e o poder público parece não querer tomar conhecimento da dimensão do problema. Com o confinamento social a que a população foi submetida por conta da COVID, emergiu uma epidemia silenciosa de sofrimento mental. E mente quem diz que está tudo bem, seja na esfera individual ou na pública. Estamos diante de milhões de pessoas quebradas por dentro.
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