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Um morto, a polícia e o dono do Porsche

Um morto, a polícia e o dono do Porsche

Quando Fernando, sua família e seus advogados voltaram a entrar em cena nessa história já haviam se passado 40 horas. Enquanto ele chegava à delegacia, rodeado por familiares e advogados num BMW, a família de Ornaldo o enterrava num cemitério

Um morto, a polícia e o dono do Porsche

Foto: Reprodução

Por: Metro1 no dia 04 de abril de 2024 às 00:00

Às 2h20min da madrugada do domingo de Páscoa, um milionário de 24 anos voa numa pista, em São Paulo, com seu Porsche azul bic 2023 de R$ 1,3 milhão de reais. O limite de velocidade no trecho é de apenas 50 km/h, mas gente como Fernando Sastre de Andrade Filho desconhece limites. Saindo de uma casa de poker com um amigo, o herdeiro de uma família de empreiteiros da construção civil paulistana disse que estava “um pouco acima do limite”, ao bater contra a traseira de um Sandero 2017, dirigido pelo motorista de aplicativo Ornaldo Viana, 52 anos. O “incidente” destruiu os dois carros e matou Ornaldo.

Este texto não tem tese nem moral (da história). É uma narração. São fatos, pessoas emparelhadas por suas classes sociais e pelo acaso, e a vida e o mundo como eles são. Quase sempre hostis com quem não tem dinheiro, proteção e direitos. Na cidade e no estado cujo governador afirmou não estar ‘nem aí’ se a Polícia Militar está matando gente inocente na esteira das operações contra o tráfico de drogas na Baixada Santista, os policiais que estavam na cena do acidente foram solícitos e autorizaram a mãe do herdeiro, Daniela de Medeiros, 45, a retirá-lo do local. Bastou mamãe dizer que iria levar o rebento, que escapou da colisão sem um arranhão, ao hospital, ali pertinho. Bastava que os policiais, quando pudessem, fossem lá quando se livrassem daquelas ferragens todas na rua enquanto a família precisava ver no hospital algo na boca de Fernando que doía.

Quando Fernando, sua família e seus advogados voltaram a entrar em cena nessa história já haviam se passado 40 horas. Enquanto ele chegava à delegacia, rodeado por familiares e advogados num BMW, a família de Ornaldo o enterrava num cemitério longe dali e a imprensa o chamava de Orlando, pois nomes de pobres são todos iguais, independentemente da sílaba onde estão colocadas as consoantes. Limpo, cheiroso e sem um hematoma, Fernando jurou na delegacia que não havia bebido nem usado drogas antes do acidente. Disse que talvez estivesse um pouco acima da velocidade da via. E que não fugiu da cena. Saiu de carro com a mãe, atordoado, mas com autorização da polícia. No que não mentiu. 

Sono de 40 horas
Fernando não lembrava de mais nada, pois lhe deu um certo apagão, atestam ele e a mãe. A sua história é oca, sem ação, sem verbos fortes. Já a história de sua mãe é dessas que atestam o quanto os roteiristas da vida real são infinitamente mais criativos que os da ficção. E que polícia ou Justiça é capaz, horas depois e sem bafômetro, sem exames toxicológicos, de julgar a ação de uma mãe zelosa que às duas da madrugada de um domingo de Páscoa miraculosamente liga para um filho, alguém atende, lhe fala de um acidente, ela corre e só se lembra de si ajoelhada no asfalto, ajudando o filho, pedindo à polícia que a deixe levá-lo ao hospital?

Na próxima cena, ela já pensa em dar uma passada na casa dele, para ambos tomarem um banho… afinal não pega bem chegar a um hospital um pouco sujos por marcas de chão, de acidente… Depois acha por bem tomar um relaxante muscular, pelo nervosismo. O remédio faz efeito, ela dorme e, ops, 40 horas depois lembram-se: houve um acidente, há um homem morto e enterrado, ambos esqueceram-se do hospital e só por isso há coisas horríveis sobre ambos sendo ditas na internet, nas redes sociais, na imprensa.

É hora de tirar o BMW da garagem, chamar uns advogados e ir à delegacia contar esses detalhes incidentais. Ninguém fez nada errado, não houve fuga. Os policiais os deixaram ir para o hospital. E se não foram, não foi por má-fé. Foi apenas uma passagem em casa, para um banho, para um relaxante muscular, que levou ao sono. Mas 40 horas depois, todos estão ali, na delegacia, não estão? No BMW, Fernando não será preso. Ornaldo, ou Orlando, tanto faz, não ressuscitará.