
A violência sexual light de Sóstenes
A defesa da vida só é absoluta quando se trata do que as mulheres podem ou não fazer se não quiserem ter um filho indesejado, não planejado, sem pai, ou filho de um estuprador

Foto: Reprodução
Exceto seu eleitorado, o Brasil desconhecia este nome até ele se tornar sinônimo de defensor de criminalização de crianças e meninas que engravidam de estupradores. Sóstenes Cavalcante. Alagoano, 49 anos, pastor, teólogo e no terceiro mandato de deputado federal pelo PL do Rio de Janeiro, o mesmo do ex-presidente Jair Bolsonaro. Aliadíssimo do pastor Silas Malafaia, Sóstenes atingiu o apogeu da fama e da aparição nacional no último domingo, como entrevistado do Fantástico, para se manifestar diante da repercussão estrondosa do PL do estupro, de sua autoria. O objeto do PL é tornar crime equivalente a homicídio o aborto realizado por mulheres que engravidarem em consequência de um estupro e se submeterem ao procedimento após 22 semanas de gestação.
O projeto que saiu da cabeça e da lavra de Sóstenes, se aprovado, fará com que o estuprador tenha uma pena menor, se condenado, do que a da vítima que se recuse a parir um filho do seu violentador. Os momentos midiáticos mais nobres da vida pública do deputado pastor foram usados para que ele mais uma vez exibisse a sua falta de pudor diante do ódio dedicado às mulheres. Questionados sobre a crueldade do projeto, Sóstenes cunhou um adjetivo típico de homens de sua laia para julgar as mulheres. Disse que o projeto não tem defeitos e é LIGHT. Na língua escrita em tempos de rede, redigir uma palavra em maiúscula, ou em caixa alta, como se diz, tem a mesma conotação de gritar.
Sim, grafar o adjetivo usado pelo autor da PL do estupro para qualificar a proposta, LIGHT, é mesmo um grito. Ao dizer que criminalizar e condenar a até 20 anos de cadeia uma menina ou mulher que só consiga, pela via-crúcis que é esse processo legal e médico, o acesso ao aborto assegurado por lei e na rede pública de saúde, é LIGHT, equivale a dizer que a cadeia por duas décadas é uma pena pequena, suave. Talvez condenar à pena de morte, readmitir a fogueira da inquisição. É essa a visão de mundo contraditória dos autodescritos como pró-vida. Pró-vida de quem?
São a favor da pena de morte, defendem a tese do bandido bom é bandido morto, querem livre direito à compra, porte e uso de armas. E a defesa intransigente da vida só é absoluta quando se trata do que as mulheres podem ou não fazer se não quiserem ter um filho indesejado, não planejado, sem pai, ou filho de um criminoso estuprador. A náusea gerada pelo movimentos do lábio inferior aparentemente melecado por um gloss rosado ou tinturado como maquiagem definitiva numa clínica de rediagramação facial - paga com os salários incríveis dos parlamentares -, só foi suplantada pela boneca apocalíptica de mau gosto contatada pelo senador cearense Eduardo Girão para fazer cena de terror freak no Senado.
Viúva Porcina em couro fake
Apresentada como contadora de histórias, Nyedja Gennari foi ao Senado na segunda-feira fazer uma performance constrangedora. Nem precisa entrar no mérito do debate sobre aborto. A vergonha era estética mesmo. Um teatro de vampiros. Uma mulher cafeteira, num figurino meso agro, meso Viúva Porcina in black, numa roupa de couro fake, uma florzona vermelha numa orelha só e ornando com uma bota do mesmo tom, interpretava um feto gerado por um estupro. Regina Duarte talvez fizesse melhor a cena. Ou Cássia Kis. Ambas estão nas redes aprovando a cadeia light para as mulheres que não querem ser mães de filhos de estupradores.
Se houve algo reconfortante gerado pelos discursos reacionários que compõem a pauta de Sóstenes e do seu rebanho com mandato e sem, foi o tamanho da reação nacional ao PL. Reações contundentes apontando para o retrocesso e para o ódio contra as mulheres vieram até mesmo do próprio segmento evangélico e de setores mais à direita. As reações contrárias vieram numa escala, volume e proporção que incomodou, como há muito não se via entre as bancadas conservadoras. O que inicialmente pareceu à bancada aliada a Sóstenes ser um golpe de astúcia de Arthur Lira, que articulou a aprovação em urgência da tramitação do PL, se tornou um tiro no pé. Há muito tempo, os reacionários não eram atacados, nas ruas e nas redes. O próprio Lira, surpreendentemente, foi tão ou mais atacado pessoalmente, pela urgência que construiu, que o pai do PL. As pessoas foram para as ruas para defender aborto legal. Isso não é pouca coisa, no estado de coisas do Brasil.
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