Sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Faça parte do canal da Metropole no WhatsApp

Home

/

Artigos

/

Medicina “jus primae noctis”

Medicina “jus primae noctis”

Não há dúvida de que, na década de 90, havia necessidade de expandir cursos médicos, contudo esta expansão mereceria planejamento

Medicina “jus primae noctis”

Foto: Reprodução

Por: Raymundo Paraná no dia 16 de outubro de 2025 às 07:27

Na Escócia medieval, o rei da Inglaterra, por motivação política, concedeu aos nobres o direito à primeira noite com a noiva dos servos. Afinal, eles tinham o benefício de cultivar nas suas terras. Assim pensava a nobreza.

O que estes fatos históricos têm a ver com a medicina brasileira? A leitura desse artigo sobre o expansionismo desvairado do ensino médico no Brasil fará a contextualização.

O avanço sem direção do ensino médico

A falta de planejamento nos persegue em todos os setores do país e o expansionismo dos cursos de medicina é ilustrativo desta sina. Não há dúvida de que, na década de 90, havia necessidade de expandir cursos médicos, contudo esta expansão mereceria planejamento, organização, regulatório e fiscalização, até porque a perda de qualidade do ensino médico já se fazia sentir.

A esperança de um crescimento ordenado de escolas médicas, qualitativo e quantitativo, logo foi dissipado na geração frenética de faculdades em cada esquina, sem que os projetos pedagógicos fossem minuciosamente avaliados e acompanhados. O mercado farejou a oportunidade de ganhar e aproveitou-se das fragilidades do regulatório e da fiscalização.

Formar médicos em escolas deficientes não resolve problemas do sistema de saúde, ao contrário, pode agravá-los, mas não parecia haver preocupação com isso. 

Alheio ao pusilânime decreto 328/2018 (moratória de novos cursos), o mostrengo cresceu sem regulação, aliado ao poder econômico. A moratória fomentou o descalabro e escancarou a passividade dos poderes da República diante da mediocridade instalada.

Conforme esperado, advogados se regozijaram das lacunas de leis, gerando judicializações para novas escolas, ainda menos fiscalizadas e menos reguladas. O cenário tornou-se, então, hostil às boas propostas de ensino médico, pois instituições com projetos bem-intencionados não ousariam adentrar neste imbróglio.

Médicos malformados, sistema adoecido

Hoje, a sociedade reclama do atendimento médico e ressente-se da resolutividade do sistema. Já as fontes pagadoras são penalizadas pelo custo. Perplexa, a população questiona a qualidade dos egressos dessas faculdades, até porque, todos têm certeza de que seria impossível para o país prover novas escolas médicas de professores bem-preparados e de bons campos de prática num curto período. Não faz sentido o Brasil ter mais escolas médicas do que a China e Estados Unidos, mediante a disparidade econômica e populacional entre nós e eles.

Médicos - e outros profissionais de saúde - malformados são perigosos para o sistema, pois não são resolutivos. Vorazes demandadores de exames, encarecem e não conseguem organizar a baixa, a média e a alta complexidade.

Deste modo, enfrentamos riscos, não só para a população, como também na viabilidade do sistema de saúde, seja ele público ou privado. Saúde não tem preço, mas tem custo que é repassado ou contingenciado, o que significa penalização de todos.

E qual o motivo da analogia com Jus Primae Noctis? Ambas são situações que ilustram o pensamento do poder e a sua incapacidade de empatia social. Quem manda, sabe que terá acesso a bons hospitais que ainda selecionam profissionais com boa formação. Já o usuário do SUS não terá sequer o direito de saber da qualificação daqueles que estão cuidando da sua saúde. Afinal, do que reclamar se não tinham nada e estão recebendo um médico?

Que os poderes da República acordem do seu sono letárgico e enfrentem os provedores de soníferos. 

Raymundo Paraná é professor Titular de Gastro-Hepatologia da UFBA, membro titular da Academia Baiana de Medicina e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Hepatologia e da Associação Latino-Americana para o Estudo do Fígado