
Medicina “jus primae noctis”
Não há dúvida de que, na década de 90, havia necessidade de expandir cursos médicos, contudo esta expansão mereceria planejamento

Foto: Reprodução
Na Escócia medieval, o rei da Inglaterra, por motivação política, concedeu aos nobres o direito à primeira noite com a noiva dos servos. Afinal, eles tinham o benefício de cultivar nas suas terras. Assim pensava a nobreza.
O que estes fatos históricos têm a ver com a medicina brasileira? A leitura desse artigo sobre o expansionismo desvairado do ensino médico no Brasil fará a contextualização.
O avanço sem direção do ensino médico
A falta de planejamento nos persegue em todos os setores do país e o expansionismo dos cursos de medicina é ilustrativo desta sina. Não há dúvida de que, na década de 90, havia necessidade de expandir cursos médicos, contudo esta expansão mereceria planejamento, organização, regulatório e fiscalização, até porque a perda de qualidade do ensino médico já se fazia sentir.
A esperança de um crescimento ordenado de escolas médicas, qualitativo e quantitativo, logo foi dissipado na geração frenética de faculdades em cada esquina, sem que os projetos pedagógicos fossem minuciosamente avaliados e acompanhados. O mercado farejou a oportunidade de ganhar e aproveitou-se das fragilidades do regulatório e da fiscalização.
Formar médicos em escolas deficientes não resolve problemas do sistema de saúde, ao contrário, pode agravá-los, mas não parecia haver preocupação com isso.
Alheio ao pusilânime decreto 328/2018 (moratória de novos cursos), o mostrengo cresceu sem regulação, aliado ao poder econômico. A moratória fomentou o descalabro e escancarou a passividade dos poderes da República diante da mediocridade instalada.
Conforme esperado, advogados se regozijaram das lacunas de leis, gerando judicializações para novas escolas, ainda menos fiscalizadas e menos reguladas. O cenário tornou-se, então, hostil às boas propostas de ensino médico, pois instituições com projetos bem-intencionados não ousariam adentrar neste imbróglio.
Médicos malformados, sistema adoecido
Hoje, a sociedade reclama do atendimento médico e ressente-se da resolutividade do sistema. Já as fontes pagadoras são penalizadas pelo custo. Perplexa, a população questiona a qualidade dos egressos dessas faculdades, até porque, todos têm certeza de que seria impossível para o país prover novas escolas médicas de professores bem-preparados e de bons campos de prática num curto período. Não faz sentido o Brasil ter mais escolas médicas do que a China e Estados Unidos, mediante a disparidade econômica e populacional entre nós e eles.
Médicos - e outros profissionais de saúde - malformados são perigosos para o sistema, pois não são resolutivos. Vorazes demandadores de exames, encarecem e não conseguem organizar a baixa, a média e a alta complexidade.
Deste modo, enfrentamos riscos, não só para a população, como também na viabilidade do sistema de saúde, seja ele público ou privado. Saúde não tem preço, mas tem custo que é repassado ou contingenciado, o que significa penalização de todos.
E qual o motivo da analogia com Jus Primae Noctis? Ambas são situações que ilustram o pensamento do poder e a sua incapacidade de empatia social. Quem manda, sabe que terá acesso a bons hospitais que ainda selecionam profissionais com boa formação. Já o usuário do SUS não terá sequer o direito de saber da qualificação daqueles que estão cuidando da sua saúde. Afinal, do que reclamar se não tinham nada e estão recebendo um médico?
Que os poderes da República acordem do seu sono letárgico e enfrentem os provedores de soníferos.
Raymundo Paraná é professor Titular de Gastro-Hepatologia da UFBA, membro titular da Academia Baiana de Medicina e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Hepatologia e da Associação Latino-Americana para o Estudo do Fígado
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