
Medicina em uma sociedade “enredada”
O que pensam os profissionais que, a despeito da honra, exibem pacientes como se coisas fossem, em busca de validações efêmeras?

Foto: Reprodução
Certa feita, por ocasião de um discurso de paraninfia que tive a honra de proferir na Faculdade de Medicina, expressei o quanto admirava o momento em que os médicos erguiam a mão para jurar por Apolo, Esculápio, Higeia e Panaceia, e tomar todos os deuses e deusas por testemunhas do fiel cumprimento do cuidado à saúde da forma mais atenta e ética possível. Manifestei, ainda, que de todos os trechos do juramento hipocrático, destacava dois que agora menciono: os “preceitos da honestidade”, já que a etimologia da palavra “honesto” provém do latim honos, nos conduzindo aos conceitos de dignidade e honra; e o trecho “os segredos que me forem revelados”, reforçando que só se diz um segredo a quem se “confia”.
A dignidade, segundo Kant, é a qualidade destinada a todas as pessoas, que pelo fato de não serem coisas não podem ser precificadas, permutadas ou tratadas como se objetos fossem. Sobre “confiar”, é possível que sua forma verbal esteja relacionada ao substantivo “fio”, de modo que con-fiar pode ser interpretado como “fiar com”, construir um fio, um laço de “confiança”. E isto me fez lembrar das moiras, da mitologia grega, três irmãs que determinavam o destino, tanto dos deuses, quanto dos seres humanos, e que fabricavam, teciam e cortavam o que seria o fio da vida de todos os indivíduos.
Portanto, podemos considerar que os pacientes confiam aos médicos as suas vidas e estes, por sua vez, passam a ter a honra de levar informações preciosas, importantes, sensíveis e vitais em suas mãos, quase que tal como as moiras. É uma grande responsabilidade moral. No entanto, ao observar, por vezes, condutas destoantes na atualidade, me pergunto: o que pensam os profissionais que, a despeito desta honra, exibem pacientes como se coisas fossem, em busca de validações efêmeras? Quão naturalizada se tornou a prática da desonra em uma sociedade “enredada”, pronta para transformar a intimidade em mercadoria a despeito dos con-fiares das vidas alheias? Para que juram aqueles que, em seguida, perjuram com prescrições irreais e exposições excessivas?
Que os deuses da saúde nos relembrem: o juramento não é ritual de passagem, mas pacto permanente. E que aqueles que o pronunciam saibam que perjurar não ofende apenas divindades antigas, mas a dignidade concreta de quem confiou o fio de sua vida a mãos que deveriam significar proteção. Talvez seja tempo de retornar ao início, não ao juramento como formalidade, mas ao seu sentido primeiro: o de que há vidas, não mercadorias; confiança, não exposição; honra, não métricas. Mesmo porque, ainda que os deuses da antiguidade estivessem em silêncio, a simples ou complexa dignidade humana - atemporal - nos convoca a refletir
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