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O jornalismo e a antecipação da morte

O jornalismo e a antecipação da morte

O jornalismo e a antecipação da morte

Foto: Reprodução Jornal da Metropole

Por: Malu Fontes no dia 06 de maio de 2021 às 10:58

As redes sociais redimensionaram o significado do verbo morrer, até para segmentos do jornalismo, para quem deveria ser óbvia a diferença entre estar morto e estar vivo. O falecimento do ator Paulo Gustavo, aos 42 anos, após quase dois meses de internação por Covid, foi objeto de mais uma repetição da antecipação da morte de uma pessoa famosa. Na tarde de terça-feira, quando começaram a circular as informações de que o quadro de saúde do ator se agravara e se tornara irreversível, repetiu-se nas redes sociais, e em maior escala, o mesmo roteiro do obituário antecipado quando da morte cerebral do apresentador Gugu Liberato, em novembro de 2019. 

Uma postagem da época, feita em um site de notícias em Salvador, definia bem o neoenquadramento dado à morte dos famosos em tempos de concorrência acirrada pela instantaneidade do furo jornalístico em plataformas digitais. Mais importante que a fidedignidade da informação é a velocidade e o imediatismo de quem anuncia primeiro, independentemente da imprecisão da notícia publicada. Ou melhor, postada. A postagem de 2019 sobre Gugu dizia algo mais ou menos assim: “Apresentador Gugu morre aos 60 anos após acidente doméstico; assessoria nega”. Algumas horas depois, a assessoria confirmou. 

Não foi muito diferente com a morte de Paulo Gustavo. Embora o óbito só tenha sido confirmado oficialmente por volta das 21 horas da terça (04 de maio), desde o meio da tarde vários sites pouco expressivos e a Rede Record já haviam “cravado” a morte, levando anônimos e famosos amigos do ator a baterem boca o resto do dia, debatendo ética jornalística, a falta dela, e a trocando de ofensas como corvos, abutres e insensíveis. O jornalismo, aliás, quando pega gosto por uma palavra da vez, não escreve um parágrafo sem usá-la. E cravar é o verbo de agora, uma espécie de confirmação e martelo batido sobre algo. Não se confirma nem se garante mais nada. Crava-se. Como um prego.

PASSAMENTO - No contexto da tragédia da Covid, além do glossário imenso intrínseco à pandemia, os jornalistas adotaram sem moderação o verbo ceifar (vidas), para morrer e matar, e o substantivo passamento. Nem servem para suavizar a morte e substituem mal os já péssimos fazer a passagem e ir para outro plano. O presidente Bolsonaro recorreu a passamento para manifestar seus sentimentos com a morte de Paulo Gustavo nas redes. Mas seja lá como venhamos a nomear a morte e o ato de morrer daqui para a frente, ainda deveria ser obrigatório manter clareza e consenso sobre ‘quando’ uma pessoa, famosa ou anônima, deve ser anunciada morta.

Algo semelhante à confusão informativa que se viu em torno da morte de Paulo Gustavo aconteceu recentemente também com a morte do psicanalista Contardo Calligaris. Com a sua não morte, melhor dizendo. Um post de despedida do filho em uma rede social foi interpretado como o anúncio oficial da morte pela família e daí para um site publicar o falecimento foram minutos, com os mesmos desdobramentos. Acusações de insensibilidade, de espalhamento de fake News, crueldade, desrespeito. 

Antecipação também aconteceu com a atriz Nicette Bruno e com o policial militar alvo de tiros no episódio do suposto surto no Farol da Barra. Em todos esses casos, as pessoas morreram, mas horas ou dias após suas mortes serem anunciadas on-line. Em um cenário de tantas mortes, todos os dias, e quando se fala tanto em protocolos, é tão difícil assim estabelecer um consenso para quando se pode dizer que uma pessoa está viva ou está morta? O que não dá é para clicar num link e deparar-se com um está vivo/está morto, como nesse texto, publicado ainda no meio da tarde dessa terça-feira: “Site diz que Paulo Gustavo morreu, mas família e hospital não confirmaram oficialmente a notícia - Paulo Gustavo morre após mais de 40 dias intubado com COVID-19”. É o leitor, então, quem decide a condição de morto ou vivo?