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Segunda-feira, 22 de abril de 2024

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A palavra já morreu 

A palavra já morreu 

Se depender do aplauso e da vaia dos polos histéricos, textos não serão mais escritos

A palavra já morreu 

Foto: Reprodução Jornal da Metropole

Por: Malu Fontes no dia 11 de novembro de 2021 às 11:42

Está puxada a vida do jornalista. Tudo o que existe tem um nome e, na alfabetização da carreira na faculdade, se aprende que jornalismo é, essencialmente, em sua natureza textual, a soma de três elementos: nomeação, seleção e hierarquização. Um texto publicado num veículo noticioso precisa nomear aquilo que aborda, o substantivo do fato: crime, escândalo, festa, política, corrupção, morte, etc. A seleção é a parte em que, para escrever uma notícia, a gente escolhe as informações que têm valor, sentido, relevância e importância. Hierarquizar é decidir o que a gente coloca no início, no meio ou no fim de um texto jornalístico. E o que descarta, claro, por ser inútil mesmo, como informação. Isso vale para o jornalismo informativo e o opinativo. Neste, quem escreve já pode aplicar seu estilo à vontade. Daí alguns textos serem leves, outros burocráticos, outros emboloradas, os chatos e os deliciosos de serem lidos.

O jornalismo vive de publicizar na esfera pública os acontecimentos mais relevantes e, em tese, numa sociedade livre e democrática, deve abordar todos os temas. Governantes não podem proibir o noticiamento de temas que lhes desagradem, e esse princípio abriga-se sob o guarda-chuva da liberdade de expressão, uma garantia constitucional. Sim, não há, no universo dos direitos, nenhuma liberdade absoluta. Daí aquele paradoxo que nos habita: qual é o nosso limite de tolerância para com os intolerantes? 

A polarização do Brasil, no fluxo de um fenômeno global, de uma cultura de ódio e do cancelamento que massacra as possibilidades de alteridade, tem nos atirado cotidianamente no meio de um redemoinho onde ficam cada vez borradas as fronteiras entre liberdade de expressão e autorização para ofender o outro e estimular a violência contra quem pensa diferente de nós, numa confusão entre discordância e ofensa, coisas obviamente distintas. Nesse contexto de coisas e no ambiente de justiçamento promovido por milhões de pessoas nas bolhas das redes sociais a nomeação, uma característica tão cara ao jornalismo, vem sendo transtornada em mecanismo de disparo de linchamento e ofensas virtuais contra quem notícia coisas, escreve ou fala em veículos informativos. 

De um lado, as bolhas da extrema direita, dos reacionários e dos conservadores elegem seus dicionários de permissões e proibições. Odeiam jornalistas, feministas, ambientalistas, professores universitários, teses humanistas ou humanitárias, gays, identitaristas e mais um punhado de coisas. Do outro, a esquerda que se define como moderna, progressistas, liberal nos costumes, humanitária, carregadora do andor das causas do bem comum e da defesa das minorias, dos fracos e dos oprimidos, de chicote na mão, esfola, por causas diferentes, mas métodos muito parecidos aos dos seus antagonistas, quem ousa não aderir às cartilhas e suas igrejinhas, onde tudo é compartimentado segundo a lógica da superioridade moral erigida em nome do bem e dos bons, e usa o vocabulário dos comuns para nomear as coisas. 

Todo mundo que escreve deve adotar como pressuposto que o leitor é inteligente e capaz de compreender não só o que é dito e o esboçado. Pois bem, aqui vai o óbvio, embora meio não dito: a direita e à esquerda, juntas, travam todos os dias uma briga de foice disputando o lugar de quem mata mais, melhor e de forma mais rápida a imprensa e o jornalista. Para a direita, os jornalistas são descaradamente esquerdoides e esquerdopatas. Para a esquerda, uns direitistas manipuladores de merda. Até recentemente, a coisa era meio partidária, passava só pelas coisas mais próximas da ideologia da política partidária mesmo. Agora, o vírus da intolerância e do esmagamento das reputações de empresas noticiosas e seus jornalistas se espalhou feito metástase. Quase nenhuma palavra pode ser dita. 

XINGAR INBOX 

Publicar um texto, sobretudo se for de crítica ou análise de alguma coisa, de uma campanha política a uma coleção de moda, de um livro, um álbum musical, uma canção, um clipe, uma carreira, uma tendência de comportamento, é certeza, para quem escreve, de ser massacrado, por um polo ou outro, ambos ferozes e capazes de atribuir a quem criticam as ofensas mais torpes e covardes. A expectativa, impossível de se cumprir, claro, parece ser a de que quem tem espaço na esfera pública para dizer algo tem agora, por obrigação prévia, pedir autorização aos dogmáticos da palavra alheia, à direita ou à esquerda, para usar a palavra considerada adequada, pura, justa e, por óbvio, inexistente. 

Se depender do aplauso e da vaia dos polos histéricos, textos não serão mais escritos. O silêncio? Isenção dos calhordas. A manifestação? Uma autoficção para  ser chamando de hater, intolerante, arrombado, equivocado, racista, fascista, misógino, burro, velho, caduco, comunista, satanista, abortista. A palavra, para os justiceiros das redes sociais, deve morrer. E seu articulador, junto, de preferência. Mas o ódio e o equívoco de quem ofende, sem sequer ler o que lhe leva a atirar pedras, ah, esses são instrumentos de quem está lutando pela liberdade. A própria, a de ser cruel, donos das certezas todas, juízes do vocabulário alheio, xingar inbox, ou extrair satisfação com a maior patetice do mundo, como se o repertório de cada um precisasse da autorização de membros da manada anônima.