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O cancelamento do boi

O cancelamento do boi

a cereja do bolo bovino mesmo foi a instalação, na terça-feira anterior ao domingo da prova de Linguagens do Enem, de um boi dourado, feito de isopor e cópia caricata do touro de bronze maciço de Wall Street/Nova York, no Centro de São Paulo, na Bolsa de Valores

O cancelamento do boi

Foto: Reprodução Jornal da Metropole

Por: Malu Fontes no dia 25 de novembro de 2021 às 12:54

Os bovinos nunca estiveram tão em evidência na crônica política e social brasileira. Como metáforas da passividade e alienação do brasileiro e como tradução real de parte dos temas nacionais urgentes. Há tempos, temos a bancada do boi, o protagonismo do agronegócio com a exportação de uma das maiores commodities brasileiras, a carne bovina e escândalos como o da Friboi. Nos últimos anos, de virtuosos para a economia do país os bovinos foram se transformando em vilões, apontados como um dos principais responsáveis pela devastação ambiental, recordistas na produção de gases para o efeito estufa, consumidores vorazes dos mananciais de água e indiretamente responsáveis, coitados, pela derrubada de florestas para dar lugar a pastos.

O ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Sales, nunca apagará do seu currículo aquela frase devastadora para sua continuidade no cargo, quando daquela reunião ministerial histórica em que Sérgio Moro foi fritado e Nelson Teich descobriu, horrorizado, que não suportaria ficar no cargo que acabara de assumir, o de ministro da Saúde. Quem nunca viu se repetindo na TV, em forma de meme em aplicativos de conversa ou de gif em rede social, a fala de Salles recomendando que o Governo devia aproveitar que os olhos da mídia estavam voltados para a Covid e “passar a boiada”, passar tudo, mudar todas as regras da legislação ambiental? 

E vão somando-se as metáforas. À da nomeação de “gado” ao núcleo duro do bolsonarismo veio juntar-se a questão do Enem deste ano e cujo enunciado, para falar de passividade social dos brasileiros pobres, usou um trecho da canção de Zé Ramalho, ‘Admirável gado novo”, aquela do ‘ê ô ô/vida de gado/povo marcado ô/povo feliz’. Foi coincidência, mas não poderia ter sido mais infeliz. Foi uma bola a ser chutada para o gol da piada pronta. Às vésperas do Enem, o presidente da República e o Ministro da Educação defenderam com veemência a tese de que o exame teria que ter ‘a cara do governo’. Para os críticos, teve: uma questão chamando o povo de gado. 

Entretanto, a cereja do bolo bovino mesmo foi a instalação, na terça-feira anterior ao domingo da prova de Linguagens do Enem, de um boi dourado, feito de isopor e cópia caricata do touro de bronze maciço de Wall Street/Nova York, no Centro de São Paulo, na Bolsa de Valores. Ganharia um doce quem adivinhasse o nome da intervenção artística: touro de ouro. Concebido pelo arquiteto, artista plástico e empresário Rafael Baratelli, e patrocinado pelo empresário Pablo Spyer, investidor, típico ‘faria limer’, sócio da XP investimentos, dono e presidente da empresa de educação financeira “Vai Tourinho” (no sentido de ‘vai, boizinho’) e apresentador do programa ‘Minuto Touro de Ouro’, da emissora Jovem Pan, em São Paulo. 

RABO NA CEIA 

A presença do touro numa praça pública no Centro da capital paulista caiu no caldeirão da polarização política brasileira e do cancelamento, tal qual a sereia que veio dar na praia na canção de Gilberto Gil, ‘A novidade”, em que metade do povo queria louvar a deusa estendida na areia e a outra metade queria devorar seu rabo na ceia. Ridicularizado, elogiado, polemizado, o touro dourado de isopor viveu apogeu e decadência em uma semana. Já foi condenado a ser retirado, por ser considerado uma intervenção publicitaria da marca de Spyver, sem licença para ocupar espaço público e por contrariar a legislação paulistana prevista no projeto Cidade Limpa, que combate poluição ambiental. 

Além de traduzir à perfeição a tese de que a crise brasileira é, antes de tudo, estética, a obra foi defendida pelo criador em termos hilários: “o touro tem estrutura metálica tubular, de ferro, muito resistente, com preenchimento de EPS [isopor], de alta densidade e fibra de vidro [...]. Pensei em criar um touro porque é um animal de que eu gosto. Eu sou do signo de touro. Você já deve ter visto um touro dando uma batida de baixo para cima, e fazendo o predador voar. Eu me identifico com o animal”. Criticado, ameaçado e acusado de plagiar o touro novaiorquino, Brancatelli rechaça tudo. Defende-se dizendo que a obra é antiostensação, pois feita de isopor. Se fosse de metal, seria roubada, pratica, segundo ele, comum no centro. Roubado, não foi. Só expulso.