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Saída da sede do TRT expõe abandono histórico e esvaziamento do bairro do Comércio
Antigo coração financeiro de Salvador, Comércio assiste à própria ruína em meio à fuga de órgãos públicos e prédios em colapso
Foto: Metropress/Marcelle Bittencourt
Matéria publicada originalmente no Jornal Metropole em 10 de julho de 2025
O esvaziamento do bairro do Comércio, em Salvador, é mais que um sintoma: é o retrato consolidado do abandono e da falência de sucessivos projetos que prometeram revitalizar uma das regiões mais simbólicas da capital baiana. Se antes a região era o coração pulsante de Salvador, se já foi o primeiro bairro de negócios organizado do país, hoje parece viver à sombra de seu próprio passado. A saída do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região (TRT-5) de sua histórica sede na Rua Miguel Calmon, finalizada no mês passado, apenas escancara o declínio do antigo centro empresarial da cidade, que há décadas assiste à perda de vitalidade urbana, relevância institucional e presença do Estado.
O último que sair apaga a luz
O TRT-5 era um dos últimos grandes órgãos ainda em funcionamento regular na região. O ir e vir de seus servidores e advogados diariamente representava um dos poucos respiros de atividade no bairro. Com sua transferência para a Avenida Luís Viana Filho, a Paralela - endereço que tem concentrado repartições públicas, empresas e novos investimentos -, o Comércio perde um de seus principais motores de circulação de pessoas. O prédio abrigava setores administrativos, varas e serviços, assim como o edifício de Nazaré do TRT. A mudança, segundo o tribunal, é para concentrar todas as sedes em um só lugar. Mas a debandada do Judiciário só aprofunda o silêncio que já impera nas calçadas do bairro, marcando mais um capítulo no processo de abandono do centro antigo de Salvador.
Metropress/Marcelle Bittencourt
De coração financeiro para região fantasma
Entre o Porto, a Baía de Todos os Santos, o Elevador Lacerda e o Centro Histórico, o Comércio abrigava bancos, casas comerciais, armazéns, consulados, restaurantes tradicionais e edifícios emblemáticos como a sede da antiga Bolsa de Mercadorias. A região era o elo entre o poder administrativo e o setor produtivo da capital baiana. A presença da estação ferroviária da Calçada e de um polo industrial ativo impulsionaram a expansão urbana até a Ribeira e consolidaram o Comércio como motor do desenvolvimento de Salvador.
No fim dos anos 1980, o escritor baiano Jorge Amado narrava a história de “dona Flor e “seus dois maridos”, uma história protagonizada especialmente pela beleza de Salvador. No enredo, a personagem Rozilda, mãe de Flor, torce que um genro próspero apareça para a sua filha. No livro, ela chega a questionar quando surgiria esse homem cheio de posses do “Cidade Baixa ou do Comércio”. A história mostra como o bairro representava riqueza, dinamicidade e abundância.
Esvaziamento programado
Esse protagonismo, porém, começou a se desfazer entre as décadas de 1980 e 1990, quando bancos e repartições públicas migraram para áreas como o Caminho das Árvores, Iguatemi e, mais tarde, a Avenida Luís Viana Filho (Paralela). “Até a década de 1990, o Comércio ainda representava a grande área bancária da cidade, mas já demonstrava em diversas zonas um esvaziamento físico e sinais de abandono”, avalia Ernesto Carvalho, vice-presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo da Bahia.
Para ele, a negligência com o bairro não é exceção: “Infelizmente, áreas históricas muitas vezes são tratadas como hiatos no planejamento das cidades. Nosso bairro do Comércio têm muitos edifícios que podem desabar, a exemplo da fachada do restaurante Colon, e isso nos traz a infeliz perspectiva de que não conseguimos realizar algo”. Ernesto ainda acredita que, para a região ser revitalizada, seria necessário não apenas interesse dos entes federativos, mas dos grupos privados e movimentos sociais organizados.
Restaurantes fechados, casarões caindo
As ruas do Comércio, que já ecoaram o barulho frenético dos pregões, bondes e passos apressados, agora seguem murmurando histórias esquecidas entre fachadas em decomposição e janelas empoeiradas. Restaurantes tradicionais como o próprio Colon - citado em uma obra de Jorge Amado - estão fechados e casarões históricos correm risco de desabar com o tempo. O Instituto do Cacau, um ícone da arquitetura alemã em Salvador, é um dos que enfrentam o desgaste do abandono.
Analisando no atacado, o cenário é ainda mais preocupante: segundo a Defesa Civil de Salvador, 130 imóveis na região apresentam risco elevado ou muito elevado de desabamento, outros 129 têm algum risco (médio ou baixo), o que pode afastar cada vez mais o interesse por investimentos na região.
Metropress/Marcelle Bittencourt
Planos que não saíram do papel
Recentemente, o Comércio voltou ao centro dos discursos de requalificação urbana, mas quase todos os projetos anunciados para revitalizar a região fracassaram ou seguem emperrados. Há dois anos, o seminário “Pensar a Cidade”, que discutiu o intuito de transformar o bairro em um pólo residencial, com mais de 800 unidades habitacionais destinadas a servidores municipais, não gerou medidas efetivas. Entraves estruturais, como insegurança e prédios em ruínas ou tombados, travaram ações de recuperação.
A Secretaria de Desenvolvimento Urbano (Sedur) também gerencia o Programa de Incentivo à Restauração e Recuperação de Imóveis do Centro Antigo de Salvador (Revitalizar), que pretende estimular a requalificação dos imóveis no bairro “trazendo de volta a vida, o movimento e a circulação de pessoas”. Além disso, conforme a Secretaria Municipal de Cultura e Turismo (Secult) estão previstos investimentos em aproximadamente 20 a 25 casarões para habitação. A previsão de assinatura de contrato de empréstimo com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) é até março/2026 e o programa terá seis anos de execução.
Iniciativas como a reabertura do Elevador do Taboão, a inauguração do Museu Cidade da Música e o projeto da Casa da História de Salvador também tentaram sinalizar mudanças, mas o impacto prático ainda é tímido. Enquanto isso, o bairro continua esvaziado após o expediente, com diversos casarões abandonados, carente de equipamentos básicos como escolas e postos de saúde, à espera de uma transformação que, mais uma vez, pode não se concretizar.
De frente para a Baía, de costas para o futuro
A decadência se torna ainda mais paradoxal quando se considera o potencial geográfico e histórico. O bairro com vista para a Baía de Todos os Santos e conexão com o Centro Histórico poderia ser uma porta de entrada turística, um polo cultural, um ponto de lazer. Inspirações não faltam: o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza, enquadrado pelos galpões da rua Iracema; “O Bairro (do porto) de Recife” na capital pernambucana; a área do mercado central em São Luiz do Maranhão; e até a zona portuária do Rio de Janeiro.
Quem ficou no Comércio
No meio desse cenário de abandono, estão os trabalhadores que permaneceram no Comércio, enfrentando a realidade de ruas mais vazias, hosrários limitados, vendas em queda e perspectivas cada vez mais desanimadoras. “Antes, uma loja tinha sete vendedores. Hoje, tem dois”, desabafa um comerciante da região.
Segundo a Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Urbanismo (SEDUR), somente entre 2020 e 2025, cerca de 55 restaurantes e outros serviços de alimentação e bebidas fecharam no bairro.
Metropress/Marcelle Bittencourt
Reconstruir ou esquecer?
O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Salvador (PDDU) de 2016 traz algumas diretrizes para o bairro do Comércio, sugerindo ações como a implantação de sistemas de transporte coletivo de média capacidade, para integrar a Calçada, a Península de Itapagipe e o Comércio. Há também a previsão de um Corredor Longitudinal Multimodal ao longo da Baía de Todos os Santos, que substituiria a infraestrutura do trem de subúrbio e atenderia regiões como a Lapa e o Comércio. Além disso, o PDDU propõe melhorias na infraestrutura urbana, criando condições para uma melhor circulação de pedestres e veículos não motorizados.
Apesar disso, a realidade do Comércio parece caminhar em outra direção e a deterioração do bairro só se agrava. Fachadas caindo, casarões como aqueles localizados entre o Plano Inclinado Pilar e a Praça Irmãos Pereira abandonados, falta de serviços e a ausência de revitalização efetiva mostram que, embora o papel diga uma coisa, a prática diz outra. Com isso, a pergunta que fica é: o Comércio ainda pode ser salvo ou estamos apenas assistindo a um processo de esquecimento e abandono?
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