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Capital fitness: Salvador já tem mais academias que farmácias, mas pouco suporte para evitar lesões

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Capital fitness: Salvador já tem mais academias que farmácias, mas pouco suporte para evitar lesões

A multiplicação de academias em Salvador expõe um descompasso: enquanto cresce a busca por saúde, bem-estar e vida fitness, muitas unidades seguem com estrutura limitada para atender à nova demanda

Capital fitness: Salvador já tem mais academias que farmácias, mas pouco suporte para evitar lesões

Foto: Reprodução/freepik

Por: Daniela Gonzalez no dia 21 de novembro de 2025 às 08:21

Atualizado: no dia 21 de novembro de 2025 às 08:34

Matéria publicada originalmente no Jornal Metropole em 21 de novembro de 2025

Salvador é a cidade da música, das belas praias, da poesia, do dendê e... a terra onde o povo não vive sem um supino. Isso porque dados da Secretaria Municipal da Fazenda (Sefaz) mostram que já temos mais academias (1.671) do que farmácias (1.597) — um feito digno de comercial motivacional. O problema é que, quando o aluno atravessa a catraca, percebe que o “cuidado com a saúde” fica mesmo na porta de entrada.

O primeiro impacto é sempre o mesmo: superlotação digna de Réveillon em Stella Maris, e um, quando muito dois, profissionais tentando orientar 30 alunos ao mesmo tempo. Nas grandes redes, então, virou comum o aluno circular mais tempo procurando um instrutor do que fazendo exercícios.

Falta de orientação e o excesso de improviso

Rose Soares, recepcionista em clínica médica, relatou ao Jornal Metropole que teve uma lesão após fazer exercício físico em uma academia no bairro da Liberdade. "No dia em que eu entrei foi tudo perfeito. Já no segundo dia, os professores não conseguiam dar conta de tanta demanda, e desconfio que, ali, no mínimo dois eram estagiários. Fiquei quatro meses. Uma experiência negativa, e o resultado foi uma lesão no joelho direito", contou.

Um profissional de uma academia em Salvador, que pediu para não ser identificado, relatou que trabalhou nesse tipo de estabelecimento durante alguns anos. Antes de se formar, atuava como estagiário, mas tinha as mesmas atribuições que profissionais formados, e isso sempre o alertava de que aquilo “não estava normal”.

ReclameAqui: o diário não-oficial das academias

Basta apenas uma pesquisa no ReclameAqui - site em que consumidores podem reportar suas indignações. O relato vem de um consumidor do Saboeiro, que até conseguiu entrar para treinar, mas descobriu que orientação técnica, ali, era praticamente uma miragem. Ele relata ter passado dias tentando entender a execução dos movimentos, porque ninguém aparecia para tirar dúvidas. Nem na matrícula, segundo ele, houve explicação básica. “Parece que o aluno tem que chegar sabendo”, reclamou.

No bairro da Graça, a história não muda, só ganha detalhes ainda mais picantes. A unidade, segundo um frequentador, parecia uma “bagunça anunciada”: máquinas sem manutenção, cabo frouxo, equipamento travado… e nenhum profissional por perto para resolver. Ele diz que andava pela sala como quem caminha em um depósito de ferro velho: desviando, testando, rezando para a máquina não estalar no meio da série. A sensação geral, segundo o relato, era de abandono - “uma academia bonita na fachada, mas largada por dentro”.

No Salvador Norte, uma cliente descreveu uma situação que beira a comédia involuntária: das quatro cadeiras de massagem da unidade, três estavam quebradas. A que funcionava, claro, tinha fila de espera maior do que fila de banco. Ela conta que reclamou várias vezes e recebeu respostas vagas, do tipo “estamos aguardando a manutenção”.

Em Cajazeiras, outro frequentador afirma que parte das máquinas essenciais estava inutilizada há semanas. “Toda vez que eu venho, tem um equipamento novo com aviso de ‘em manutenção’”, contou. A manutenção, porém, nunca chegava. A impressão, segundo ele, era que o aluno precisava ter fé (talvez joelhos fortes) para continuar a treinar.

Foto: reprodução/freepik

Avaliação física: o mito, a lenda, a promessa

E se alguém tenta começar pelo básico, como uma avaliação física? Em várias unidades de Salvador, o aluno descobre que a tal “avaliação” é mais promessa do que prática. Um morador da Barra conta que entrou, perguntou sobre avaliação corporal e descobriu que não havia sequer sala para isso. Muito menos um profissional disponível. Se quisesse, poderia contratar por fora - um “detalhe” que, para quem se propõe a vender saúde, soa no mínimo contraditório. Como disse o consumidor, “não faz sentido treinar sem ter um mínimo de acompanhamento, mas aqui é assim: você treina no escuro”.

Exame médico: só se for o do próprio achismo

Ao mesmo tempo, nenhuma academia exige exame médico real. Um PAR-Q (Questionário de Prontidão para Atividade Física), aquele papel em que o próprio aluno declara que está tudo bem, e resolve. A pessoa pode ter passado dez anos sedentária, mas se marcou “não” nas caixinhas, pronto: liberada para agachar com 100 quilos. É a saúde no modo autodeclaração, a mais otimista das ciências.

O que diz a Lei?

A legislação brasileira determina que as academias mantenham um responsável técnico e só permitam a atuação de profissionais de Educação Física registrados no CREF. No entanto, apesar de garantir a presença de instrutores habilitados, a lei não estabelece uma proporção mínima entre número de profissionais e quantidade de alunos, nem critérios específicos para horários de pico.

Na prática, isso cria um vazio regulatório: as academias cumprem a exigência formal, há profissionais, mas muitas vezes em número insuficiente para atender à demanda, especialmente em unidades lotadas. A falta de parâmetros claros sobre dimensionamento de equipes deixa a segurança e o acompanhamento dos alunos dependentes das decisões internas de cada estabelecimento, sem padronização nacional ou fiscalização efetiva.

Entramos em contato com a ACAD Brasil – Associação Brasileira de Academias, e até o fechamento da reportagem não obtivemos respostas.

Culto do corpo perfeito

Enquanto isso, cresce o culto do corpo perfeito, das fotos no espelho, da corrida pela estética, do abdômen como passaporte social. Com essa pressão, o aluno tolera tudo: fila para máquina, falta de instrutor, aparelho quebrado, avaliação inexistente. Aguenta porque “todo mundo está treinando”. Porque “tem que correr atrás do shape”. Porque a academia virou mais um item de status do que de saúde.

Salvador sarada ou Salvador sufocada?

E aí fica a pergunta que a própria cidade parece evitar olhar no espelho: estamos ficando mais saudáveis - ou só mais lotados? Não se trata de criticar as academias, muito pelo contrário. O objetivo é mostrar que alguns problemas começam a se enraizar no setor. As unidades estão cada vez mais lotadas e isso acende um alerta: estamos realmente preparados para receber essa nova demanda por saúde e bem-estar?

A busca por uma vida saudável virou tendência. Cada vez mais jovens têm reduzido o consumo de álcool e cigarro, migrando para hábitos que prometem mais qualidade de vida. Mas essa mudança também vem acompanhada de uma pressão estética crescente, impulsionada pelo ideal de corpo perfeito e pelo ritmo das redes sociais.

O médico Raymundo Paraná faz um alerta: “Sem dúvida, a cultura da estética faz parte de uma nova visão que chegou turbinada pelas redes sociais, onde a casca é mais importante que o conteúdo. Todo mundo tem que se mostrar muito bem, muito bonito, dentro dos seus conceitos de beleza, que são variáveis de pessoa para pessoa, mas geralmente é um estereótipo, tem que ser aquela pessoa magra, musculosa, sem rugas, como o conceito de beleza que impera nesse mundo fantasioso das redes sociais. Todo mundo está feliz, todo mundo está com o seu corpo estereotipado”.